Sobre a Vida

Ela

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Ela costumava me encontrar durante a noite. Quando o corpo sucumbia. E a mente não dormia. Quando o silêncio era, já, ensurdecedor. E o peito se enchia de tremor.
Ela não costumava me causar terror. Envolta no escuro da noite, era uma presença quase irreal. Um veneno à alma. Amargo. Mas não letal.

Até que, ontem, ela me encontrou quando era dia. Quando eu vivia. E não previa.
Até que, ontem, me escancarou. Me encarou. Se apresentou. E me assustou.

Era a Solidão. Eu a reconhecia, mesmo pensando que não a conhecia.

Ela tinha a minha cara. Me consumia com os mesmos olhos que a encaravam. E me devorava com a mesma boca que a indagava.
Me calava com meu proprio silêncio. E entorpecia meu presente e meu futuro com a toxidade do meu próprio eu.

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Sobre a Vida

Descompasso

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Há um descompasso entre o girar do mundo e o bater do meu coração. Um desencontro entre aquilo que desejo dos outros e aquilo que desejam de mim.

Os ponteiros do relógio não comportam meu tempo. Sou mais. Eu escorro pelas bordas de onde teimo caber.

Mas também sou menos. E não preencho os espaços aos quais me destinei. Deixo dois dedos de vazio, onde acumulam-se os medos. Os indesejados desejos. E as expectativas embaladas de frustração.

Sabe, acho que o preto dos meus olhos é mais profundo que azul do céu… E isso faz de mim um eterno incompleto. Um corpo sem lugar. Uma ânsia que vive sempre, por aí, a caminhar. Um coração sem-teto que só sabe vagar. Uma alma sem ter onde repousar.

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Sobre a Vida, Sobre o Coração

Vazio

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Há muito, fechei-me. Fiz casar chaves e fechaduras em minhas muitas portas. Fiz beijar ambas as bandas das cortinas em minhas muitas janelas. Fiz correr livre, dentro de mim – alheio ao externo – o calmo vento do vazio.

E correu. Bêbado de espaço. Como quis. Quando quis. Pra onde quis.

Há não-tão-muito, sufoquei-me. Vi esse vento escorrer pelas quinas do meu peito e ocupar as rachaduras deixadas pelo tempo. Vi seu varrer no mais raso e no mais profundo dos vincos do meu chão. Senti seu espalhar.

Dei asas a esse vazio que me inundou. Sem limites, como uma enchente do avesso. Que me alagou de seco. Que deu ao nada o espaço do tudo. E ao tudo um espaço de nada.

Erroneamente, permiti que o vento me ocupasse e me deixasse aqui: empanturrado de vazio. Farto de nada. Faminto por tudo.

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Sobre o Coração

Breu

29-breuQuando criança, João acreditava que a noite era um pano preto muito do grande que cobria todo o céu. Acreditava também que as estrelas lá estavam porque pequeninos pedaços desprenderam-se lá de cima, abrindo buracos e pontilhando com luz aquela solitária e escura imensidão sobre ele.

Ontem, já não tão criança, João perdeu-se do relógio quando parou no parapeito da sua janela e observou o mesmo céu.

Talvez fosse verdade que aquele preto-solidão da noite fosse um pano velho que cobria o sol, como no fim de um grande espetáculo. Talvez fosse verdade que, em cada esquina, pudéssemos encontrar seus despencados retalhos. Talvez fosse de um deles a culpa por João ter aquele coração.

Talvez foi um desses pedacinhos de breu que, ao cair sobre seu peito, fez João saber se apaixonar apenas pela solidão.

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Sobre a Vida

Vinte e quatro

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Embebedei-me de novidade. Ventilei a alma e arejei o peito. Saturei meus olhos de novas paisagens. Sufoquei meus pulmões de novos ares. E, hoje, vivo a ressaca daquela verdade que só a distância nos revela. Aquela que o cotidiano – ao turvar-te os olhos – te impede de enxergar.

Me descobri como uma folha que se desprendeu do alto de uma copa. E deixou todas as raízes no tronco daquela imponente, porém imutável, árvore. Descobri que não nasci pra permanecer no mesmo lugar a vida toda. A estabilidade nunca foi minha alma gêmea.

A busca por ela ficou para trás.

Descobri minha alma cambiante. Descobri que não sei ficar. Que não quero permanecer. Que não me contento com o que se repete. Que repudio o que bate à porta sempre à mesma hora. Que preciso de mais. Que sou mais. Que mereço mais e, por isso, pago com solidão.

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Sobre o Coração

O Vaso

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Havia um vaso ao centro-pra-esquerda daquela mesa. Não era de cristal. Não chegava a tal nobreza. Mas era tão frágil quanto. Tão delicado quanto. Precioso quanto.

Mas vivia vazio. Algumas flores até foram colocadas em seu interior. Afinal, ele precisava de flores. Precisava ter sua existência justificada. Nenhum buquê durou. E não falo da perecividade própria a cada espécie que por lá visitou. Falo de uma morte datada em 5 semanas. Mais ou menos.

Morte que minou o frescor das flores do campo da primavera de 2010. Minou a delicadeza das margaridas do verão de 2011. Minou a beleza que parecia – dessa vez – não ter fim das rosas da semana passada.

O vaso encontrou, entre as garfadas de um jantar-qualquer de uma quarta-feira-qualquer, espaço para tornar-se assunto. A família discutia como aquele era um vaso que nascera pra ser vazio. Pra ser sozinho.

Até que a avó, que em momentos de refeição só falava para reclamar da falta de sal da comida (seu coração vivera anos sob pressão alta), se pronunciou sem ao menos levantar os olhos do pequeno prato a sua frente: “Há vasos que nasceram para abrigar flores para sempre. Esse tem outra sina: será florido a vida toda. Por 5 semanas, apenas”

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